quarta-feira, 18 de julho de 2012

COMO O ESTADO ORGANIZOU A SUA PRÓPRIA ESPOLIAÇÃO


Depois de ler hoje que o «Governo quer poupar mil milhões com renegociação das PPP», numa dupla tentativa de contribuir para o debate sobre as Parcerias Público-Privadas e para que não se pense que o problema é de origem nacional, aqui deixo uma tradução que fiz dum artigo do LE MONDE DIPLOMATIQUE, que reflecte sobre aquela realidade na economia francesa e no caso específico das concessões rodoviárias.


O autor, Philippe Descamps, é professor na Universidade Paris Sorbonne e o maior destaque da sua reflexão dever-se-á ao facto de sendo este um reconhecido investigador na área da bioética e da filosofia moral, aplicar esses princípios de análise à área da economia, proporcionando-nos assim uma perspectiva diversa da estritamente económica.

FRANÇA: COMO O ESTADO ORGANIZOU A SUA PRÓPRIA ESPOLIAÇÃO
por Philippe Descamps

Iniciada pelo governo de Lionel Jospin e depois generalizada pelo de Dominique de Villepin, a privatização das auto-estradas mostra o capitalismo de compadrio à francesa. O Estado impõe um sistema de portagens caro, assume um risco substancial e depois organiza a captura da renda pelos grandes grupos.

“O uso de auto-estradas é, em princípio, livre (1).” Embelezado por esta proclamação bonita, a lei de 1955 que criou o estatuto das auto-estradas, estabeleceu de facto a regra das portagens. Este texto veio restaurar um dos direitos feudais abolidos pela Revolução Francesa, e fundou um sistema que combina o investimento público e benefícios privados. O recurso a sociedades de economia mista concessionárias de auto-estradas (Semca, cujo capital é controlado principalmente pelo estado), financiado pelas portagens não estava previsto salvo “em casos excepcionais”, mas logo se tornou padrão, em nome da “repescagem”. Em meados de 1950, a Alemanha tinha mais de três mil quilómetros de auto-estradas e na Itália, mais de 500, a França, apenas 80.

As justificações baseadas no custo económico, social e ambiental das portagens continuam frágeis. Grandes países como os EUA, o Reino Unido ou a Alemanha, desenvolveram rapidamente redes densas e livres. A gestão pública permitiu-lhes assegurar o cumprimento das prioridades em termo de gestão do território a um custo muito menor do que as ligações com portagens, necessariamente construídas em duplicação da rede existente. O financiamento através de portagens, significativamente mais caro, gera maiores encargos sobre o território e não permitiu realizar as ligações prioritárias pagas directamente pelo Estado. Além disso, a igualdade perante os utilizadores do serviço público não é garantido: em algumas regiões, como a Grã-Bretanha, as auto-estradas permanecem gratuitas.

Enquanto conduzir constituiu um privilégio poderia parecer socialmente mais justo financiar as auto-estradas através de portagens que através de impostos. Este argumento perde seu peso quando nos anos 1960 e 1970 se banalizou a propriedade automóvel. Para os automobilistas mais modestos, o custo das portagens ou impostos sobre os combustíveis torna-se mais pesado do que um imposto adicional calculado com base no rendimento.

As portagens também têm estimulado um modelo de “tudo camião” financiado por automobilistas. Ao estudar as taxas de 2012 numa vintena de itinerários principais, constata-se que um peso pesado de quarenta toneladas paga em média três vezes o preço de um veículo ligeiro, de três toneladas e meia ou menos. No entanto, os custos de investimento e de manutenção gerados pelo tráfego de camiões não são proporcionais com os de carros e motos. Um estudo recente afirma que o custo de construção de estradas para os camiões com três eixos ou mais, é superior em mais de cinco vezes ao dos carros (2), o que confirma que o maior desgaste das rodovias não se deve aos últimos. As despesas de manutenção estruturais são atribuíveis apenas aos camiões, com uma proporção de quatrocentas vezes para um quarenta tonelada face a um doze toneladas.

A evolução das Semca reflecte a da tecnoestrutura das estradas. As concessionárias, a princípio muito relacionadas com a administração a engenharia de equipamentos e os financiamentos garantidos pela comunidade, têm trabalhado cada vez mais em aliança com o sector da Construção e Obras Públicas (COP), que recolheu os benefícios de contratar ex-funcionários do Estado. Assim, em 1969, o Ministro do Equipamento e Habitação Albin Chalandon concede-lhes ainda mais autonomia. As primeiras concessões a empresas totalmente privadas começam a aparecer (AREA, ACOBA, Call). Mas a partir dos anos 1970, elas são incapazes de garantir em simultâneo o pesado investimento necessário e o custo de operação. Com excepção da Cofiroute, todas foram comprados pelo Estado, que as reembolsou do investimento inicial e “acabou garantindo os riscos para os quais a sua entrada foi solicitada”, observou o Tribunal de Contas, em 1992 (3).

Tornou-se difícil dispensar o maná das portagens... até mesmo mudar a sua justificação. O sistema de concessão parece ilimitado, da cobrança de portagens sem fim. Os primeiros direitos de passagem foram legitimados pela necessidade de amortizar o custo da construção. Após a amortização da infra-estrutura, ocorre uma mudança para as novas secções por construir... Os percursos mais rentáveis permitem o financiamento doutros, rentáveis ou não. Esta prática, conhecida como a “ligação” difundiu-se até ao impasse do Conselho de Estado em 1999.

Forçado a suspender o apoio, o governo de Lionel Jospin (Partido Socialista, PS) separa o financiamento de novas auto-estradas, criando concessões separadas, sem rever as portagens antigas ou em auto-estradas já amortizadas. Em Março de 2001, o ministro da Economia, Finanças e Indústria, Laurent Fabius, decidiu adaptar o regime das Semca ao das empresas privadas, argumentando com a possibilidade destas concorrerem no exterior. As concessões são estendidas até 2026 e 2028, ou mesmo 2032, dependendo da rede. Pouco antes de deixar o cargo em 2002, Fabius decidiu ainda vender aos privados a participação de 49% na Auto-estrada do sul da França (ASF), a maior concessionária francesa.

Quando entramos no século XXI, o equipamento da França parece atingir a maturidade. Dos 20.542 km de estradas nacionais, em 2011, havia 3.170 km de auto-estradas não concessionadas, financiadas pelo Orçamento de Estado, e 8.771 km de auto-estradas com portagem. Com as novas construções a tornarem-se marginais, os custos dos empréstimos só podem ir diminuindo. Assumindo o cargo de primeiro-ministro, Jean-Pierre Raffarin (União por um Movimento Popular, UMP), compromete-se a manter as auto-estradas sob responsabilidade do Estado, bem como algumas ligações estruturantes para a gestão do território.

No entanto o seu sucessor, Dominique de Villepin, originário da mesma maioria, muda radicalmente a sua orientação e decide, de facto e sem uma votação do Parlamento, privatizar por decreto todas as Semca. No início de 2006, a participação estatal nas empresas públicas ASF, Empresa Auto-estrada no norte da França e do leste (Sanef), Empresa Auto-estrada em Paris-Normandie (AWS), Autoroutes Paris-Rhin-Rhône (pRPA) e ÁREA é vendida por 14,8 mil milhões de euros, continuando as empresas a beneficiarem de concessões ainda válidas entre onze e vinte e sete anos... É verdade que o Estado mantém a propriedade da rede, mas é um proprietário que cede a terceiros o benefício dos seus investimentos. O final das concessões, algumas datando dos anos de 1950, é tão longínqua que trai o espírito do preâmbulo da Constituição (27 de Outubro de 1947) segundo o qual “um monopólio de facto deve passar a constituir propriedade da colectividade”.

Para dourar a pílula da privatização, o relatório de informação sobre “a valorização do património de auto-estradas” do deputado Herve Mariton (UMP) invoca o emprego e os requisitos orçamentais (4). Dívida torna-se um instrumento ao serviço dos interesses particulares. E se o eleito pelo Drôme salienta o parecer do Departamento de Estradas, que “alertou contra os riscos de comportamento predatório sobre a actividade das Semca”, considera esses temores “exagerados”. Ao insistir sobre a contribuição imediata das privatizações para os cofres do Estado, tenta fazer-se esquecer os dividendos futuros que lhe vão escapar.

Alguns dados básicos apresentam valor suficiente para atrair os “investidores” privados. As auto-estradas oferecem, de facto, um monopólio seminatural. A procura por viagens mais seguras e mais rápidas não parece reduzir-se: em 2010 houve 5,25 vezes menos probabilidade de se morrer numa auto-estrada que numa estrada departamental e 6,6 vezes menos do que numa nacional. As auto-estradas, que representam menos de 1% da rede pavimentada, asseguram 25% do tráfego. Com cerca de 20% da rede concessionada na Europa, as auto-estradas francesas representaram mais de 31% das receitas de portagem na Europa em 2011 (5). A renda revela-se confortável. Foi estimada no relatório Mariton entre 34 e 39 mil milhões de euros para a duração das concessões. Isto sem contar com o engenho dos novos accionistas...

“Distorção entre portagens e os custos”, “tarifas opacas”, “maximização das receitas”: o Tribunal de Contas, expressava já em 2008 muitas incoerências e os excessos do sistema francês de auto-estradas (6), “tornado muito favorável para os concessionários.” Os juízes denunciam particularmente a coexistência de vários sistemas jurídicos “que dão ao sistema de fixação de portagens um carácter aleatório, mesmo arbitrário.” As concessionárias beneficiam ainda de uma indexação contratual de preços, não justificada tendo em vista os seus ganhos de produtividade, e “novos aumentos mal fundamentados.” O seu melhor truque reside na técnica de “expansão”, a qual consiste em respeitar o princípio das tarifas médias, fazendo incidir principalmente os aumentos sobre as rotas mais movimentadas. O preço da rota Mantes-Gaillon subiu, por exemplo, para 5,1% ao ano nos últimos doze anos. No geral, o Tribunal constata que “as receitas efectivas das concessionárias aumentaram mais do que deveriam em relação aos níveis de tarifas afixados e aos aumentos acordados.”

Um ano depois desta investigação inicial, o Tribunal considera que o aumento das receitas continua a ser elevado: “No primeiro semestre de 2008, as receitas de portagem subiram 4,8% e 4,5% para os grupos PSA e APRR e as receitas operacionais totais de 5,6% para o grupo Sanef, num contexto de quase estagnação do seu tráfego.” E, quando os juízes insistem na clarificação do sistema, compensando os aumentos injustificados ou revendo a indexação, tanto os concessionários como o governo opõe-lhes a estrita observância do sacrossanto “contrato” e o “equilíbrio financeiro da concessão tal como definido na sua origem (7).”

Enquanto os dividendos foram reinvestidos em infra-estruturas, a complacência em da administração relativamente aos concessionários não é necessariamente contrária ao interesse público. Mas após a privatização, o governo continuou a aprovar sem contestação tarifas cada vez mais favoráveis para os accionistas, renunciando ao exercício da sua autoridade reguladora, em detrimento do utilizador.
A preocupação pelo emprego revelou-se uma fábula cujo preço foi pago pelos portageiros, massivamente substituídos por máquinas. Enquanto os “slogans” do grupo Vinci valorizam o “homem na origem do sucesso da ASF” o diálogo social deteriora-se. Os sindicalistas denunciam uma “contenção salarial” baseada em aumentos individuais. A redução de pessoal acelera. Escota (grupo Vinci-ASF), por exemplo, perdeu 18% da sua força de trabalho entre 2007 e 2009 (8).

Os principais accionistas de empresas de auto-estradas são originários da indústria da construção, onde se encontram os tradicionais financiadores das campanhas eleitorais. É pois, sem surpresa, que vemos chegar à liderança de um deles um dos preferidos dos oligarcas franceses, Alain Minc, que foi nomeado no final de 2011 como Presidente da Sanef.

Os actores do sistema de auto-estrada ilustram perfeitamente a coligação de opositores dos grandes serviços públicos descrita pelo economista James K. Galbraith: “Nenhuma dessas empresas tem qualquer interesse em reduzir o Estado, e é isso que à partida as distingue dos conservadores. Sem o Estado e as suas intervenções económicas, elas não existiriam e eles não poderiam disfrutar do poder de mercado que conseguem exercer. O seu objectivo é principalmente ganhar dinheiro do Estado - enquanto o controlarem (9).”

Notas:
(1) Lei de 18 de Abril de 1955 sobre a situação das rodovias. Texto ainda em vigor, na sua versão consolidada do Código de Auto-Estradas, artigo L122-4.
(2) “Imputação aos utilizadores PL e VL do custo de infra-estruturas rodoviárias”, relatório do departamento de pesquisa de transporte, estradas e instalações, Bagneux, Junho de 2009.
(3) “A estrada e a política de auto-estrada, a avaliação da administração da rede nacional” relatório público do Tribunal de Contas, Paris, Maio de 1992.
(4) Hervé Mariton, “A valorização do património de auto-estradas” relatório de informação da Assembleia Nacional, 22 de Junho de 2005.
(5) Dados da Associação Europeia de concessão rodoviária e instalações de portagens.
(6) “Relatório Público Anual”, Tribunal de Contas, 06 de Fevereiro de 2008.
(7) “Relatório Público Anual”, Tribunal de Contas, 04 de Fevereiro de 2009, e resposta do ministro da economia.
(8) Le Canard enchaîné, Paris, 21 de Setembro de 2011.
(9) James K. Galbraith, “O Estado Predador. Como a direita renunciou ao mercado livre e porque a esquerda deve fazer o mesmo”, Seuil, Paris, 2009.
in LE MONDE DIPLOMATIQUE – Julho 2012

Constatando-se que uma ligeira alteração nos nomes dos intervenientes (empresas e governantes) e nas datas das principais ocorrências seria bastante para reflectir a realidade nacional nesta mesma área das rodovias, será necessário acrescentar algo mais?

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