terça-feira, 24 de julho de 2012

LÁGRIMAS DE CROCODILO


João César das Neves propõe na sua mais recente crónica no DN uma interessantíssima reflexão sobre o que aparenta ser a histórica incapacidade das sociedades anteverem o seu próprio futuro. Para tal recorda a metáfora filmada por Igmar Bergman[1] em «O ovo da serpente» interrogando-se, há semelhança daquele realizador sueco, porque não somos capazes de vislumbrar o réptil a formar-se no ovo translúcido?

Forte da sua veia professoral avança de pronto para expor o “réptil” que não lobrigamos escondido nas recentes notícias que antevêem 2012 como ano com menor número de nascimentos em Portugal e cuja “paternidade” atribui facilmente à política de “subsidiação do aborto”.

Sem pretender negar a gravidade duma realidade como a da redução da população nacional, não posso deixar passar em claro a abjecta manobra de distorção – muito mais perigosa que a incapacidade de ver os problemas – subscrita por César das Neves. Mesmo descontando a sua assumida defesa da ortodoxia católica, a conclusão, grosseiramente enviesada, é indigna dalguém com as capacidades intelectuais que amplamente se lhe reconhecem, pois esquece todo um conjunto de variáveis seguramente mais explicativas que a mera despenalização do aborto. Esquece os reduzidos níveis salariais praticados, as pressões para o aumento das cargas horárias a que se sujeitam os trabalhadores, as carências em infra-estruturas de apoio aos jovens e às famílias, os elevados níveis de desemprego que vivem as camadas da população em idade reprodutiva… esquece, até, que a simples ausência de perspectivas dos jovens condiciona a sua opção reprodutiva.


Privilegiando a explicação que interessa ao seu grupo religioso e derramando lágrimas de crocodilo, esquece até o mais óbvio do óbvio: a informação e a formação a que os jovens têm hoje maior acesso influenciam as suas opções de vida profissional e familiar. É verdade que talvez tudo fosse mais simples nos tempos bíblicos, mas o problema é que às gerações portuguesas mais recentes apenas tem sido proporcionada uma visão dos “infernos”, à qual, para desgosto do Professor César das Neves, talvez elas não queiram sentenciar a sua prole.


[1] Ingmar Bergman (1918-2007), realizador de cinema sueco, influenciado por escritores como Ibsen e Strindberg, escreveu e realizou obras profundamente existencialistas. Reconhecido como um dos mais completos e influentes realizadores de cinema, dele disse Woody Allen, outro argumentista e realizador, que foi “provavelmente o maior expoente desde a invenção da câmara de filmar”.

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