João César das
Neves propõe na sua mais
recente crónica no DN uma interessantíssima reflexão sobre o que aparenta
ser a histórica incapacidade das sociedades anteverem o seu próprio futuro. Para
tal recorda a metáfora filmada por Igmar Bergman[1]
em «O ovo da serpente» interrogando-se, há semelhança daquele realizador sueco,
porque não somos capazes de vislumbrar o réptil a formar-se no ovo translúcido?
Forte da sua
veia professoral avança de pronto para expor o “réptil” que não lobrigamos
escondido nas recentes notícias que antevêem 2012 como ano com menor número de
nascimentos em Portugal e cuja “paternidade” atribui facilmente à política de
“subsidiação do aborto”.
Sem pretender
negar a gravidade duma realidade como a da redução da população nacional, não
posso deixar passar em claro a abjecta manobra de distorção – muito mais
perigosa que a incapacidade de ver os problemas – subscrita por César das Neves.
Mesmo descontando a sua assumida defesa da ortodoxia católica, a conclusão,
grosseiramente enviesada, é indigna dalguém com as capacidades intelectuais que
amplamente se lhe reconhecem, pois esquece todo um conjunto de variáveis
seguramente mais explicativas que a mera despenalização do aborto. Esquece os
reduzidos níveis salariais praticados, as pressões para o aumento das cargas
horárias a que se sujeitam os trabalhadores, as carências em infra-estruturas
de apoio aos jovens e às famílias, os elevados níveis de desemprego que vivem
as camadas da população em idade reprodutiva… esquece, até, que a simples
ausência de perspectivas dos jovens condiciona a sua opção reprodutiva.
Privilegiando
a explicação que interessa ao seu grupo religioso e derramando lágrimas de
crocodilo, esquece até o mais óbvio do óbvio: a informação e a formação a que
os jovens têm hoje maior acesso influenciam as suas opções de vida profissional
e familiar. É verdade que talvez tudo fosse mais simples nos tempos bíblicos,
mas o problema é que às gerações portuguesas mais recentes apenas tem sido
proporcionada uma visão dos “infernos”, à qual, para desgosto do Professor César
das Neves, talvez elas não queiram sentenciar a sua prole.
[1] Ingmar Bergman
(1918-2007), realizador de cinema sueco, influenciado por escritores como Ibsen
e Strindberg, escreveu e realizou obras profundamente existencialistas.
Reconhecido como um dos mais completos e influentes realizadores de cinema,
dele disse Woody Allen, outro argumentista e realizador, que foi “provavelmente
o maior expoente desde a invenção da câmara de filmar”.
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