quinta-feira, 29 de setembro de 2016

TRÊS VISÕES PARA UMA REGIÃO

Enquanto reina o caos na Síria e no Iraque, emergem três protagonistas de dimensão idêntica no actual conflito no Médio Oriente; a Arábia Saudita, o Irão e a Turquia são três estados envolvidos no conflito sírio cujos interesses poderão convergir face ao Daesh (veja-se a tantas vezes referida indulgência do regime turco face às actividades e “negócios” realizados no seu território), mas diferem no que diz respeito ao estado sírio.


As três potências regionais preocupam-se prioritariamente com a sua sobrevivência e com a solução da crise económica, financeira e social. Para a Arábia Saudita isso significa ultrapassar a era do petróleo e lançar-se na exploração de novas riquezas; para a Turquia o importante é evitar o vespeiro em que a Europa se está a transformar e manter um papel central de mediador entre os continentes europeu, asiático e africano; já para o Irão o importante é recuperar o seu lugar entre as potências da região do Médio Oriente.

Para a Arábia Saudita a era do petróleo está a tomar um rumo preocupante, pois a queda nos preços não é apenas consequência de um abrandamento da procura (que a redução da produção não tem solucionado) mas uma mudança dos paradigmas gerais, com os estados a tentarem limitar a dependência energética, nomeadamente com os EUA a tornarem-se o primeiro produtor de petróleo garças aos xistos betuminosos, a Europa a voltar-se para outras produções (nuclear, carvão, eólica, hídrica e solar), enquanto novos actores, como o Irão, fazem a sua entrada no mercado.

Sobrecarregada por uma dívida estrutural (o país apresentou em final de 2015, pelo terceiro ano consecutivo, um défice orçamental de 20% do PIB e para 2016 as previsões não são muito melhores), a Arábia Saudita enfrenta ainda uma estagnação económica (onde os custos astronómicos com a guerra no Iémen surgem a par com a queda do preço do petróleo) e o risco de conflitos sociais, consequência dos trabalhadores imigrantes continuarem a ser tratados como cidadãos de segunda. Ainda assim, o regime saudita aspira a um estatuto de potência dirigente no mundo árabe e islâmico, estendendo pela força dos petrodólares, a sua influência ideológica em todo o mundo árabe pobre, que nem por isso simpatiza mais com eles, cujos tecidos sociais muito sofrem com a polarização entre modernidade ocidental e arcaísmo saudita.

A Turquia é a potência regional mais directamente afectada pela instabilidade geopolítica local, onde, além da guerra na Síria, se destaca a crise curda, os atentados terroristas que estão a minar as receitas da importante indústria do turismo, as sanções russas e a vaga de refugiados para os quais a Turquia é a porta de acesso à Europa de Schengen, mas que ainda assim tem conseguido manter um crescimento moderado. O acordo firmado com a UE para a contenção dos refugiados no seu território reforçará a sua capacidade financeira, algo nada displicente quando precisa de fazer face aos custos com um exército que ocupa o oitavo lugar no mundo e o primeiro no Médio Oriente.

Ainda assim a Turquia almeja um papel central na região em termos de cooperação económica e de segurança (resolução de conflitos), posicionamento global, integração no G10 e um papel importante em organizações internacionais e no mundo islâmico.

Com a excepção dos EUA e dos seus parceiros no mundo árabe (Israel incluído) o Irão tem vindo a normalizar as relações internacionais contrariando o argumento das diferenças religiosas; reservas que na realidade dever-se-ão muito mais ao desejo de conter os apetites económicos ressurgidos depois da queda das barreiras criadas pelas sanções internacionais. A prová-lo está o facto do Irão preferir preços de exportação mais elevados para maximizar a receita da sua produção petrolífera, contra a estratégia da Arábia Saudita que quer manter os preços baixos para competir com o preço do petróleo de xisto norte-americano.

O regresso do Irão ao cenário internacional é uma clara oportunidade para o país e para o mundo não só por representar um mercado, livre da influência ocidental, desligado dos petrodólares (ao contrário da Arábia Saudita) e decididamente orientado para o continente asiático. Esta opção e o facto do Irão apresentar uma população muito jovem e com crescimento demográfico está a transformá-lo num actor essencial e central no Médio Oriente, impondo estratégias de desenvolvimento que são difíceis de contrariar, apesar das debilidades que constituem a elevada taxa de desemprego, que atingiu 40%, o envelhecimento dos líderes e o anquilosamento do seu sistema político.

O Irão, liberto do espartilho da economia dos petrodólares, pode preconizar estratégias baseadas num mundo multipolar (o país é já um dos destinos da rota da seda, intensifica suas relações com a Índia, e com a Rússia, com quem mantém um projecto para construir um canal que ligaria o Mar Cáspio ao Golfo Pérsico) e uma orientação assertiva para a Ásia e para a constituição duma grande coligação com as potências continentais asiáticas  Rússia, China, Índia e Paquistão –, enquanto no âmbito regional afirma a sua aspiração a um papel de líder, especialmente quando não exclui uma aproximação com a Turquia.

De matriz religiosa diferentes (Irão, xiita versus Arábia Saudita e Turquia, sunitas), procurando apoios distintos (ligação da Arábia Saudita aos EUA, da Turquia à Europa e com o Irão a aproximar-se da Ásia) e de origens diversas (os sauditas são árabes originários da Península Arábica, os turcos são originários da Ásia Central e Oriental, enquanto os iranianos são originários da Ásia Central com forte influência persa), todos têm vindo a reforçar os seus orçamentos militares (lembremos que a Turquia dispõe do oitavo Exército do mundo e o primeiro Médio Oriente, a Arábia Saudita viu os seus orçamentos de defesa e de armamento dispararem com o seu envolvimento na guerra no Iémen e o Irão destina 5% do orçamento total para o programa de reforço das suas capacidades de defesa e sem referir a proliferação nuclear, situação em que pensamos imediatamente num Irão acusado de continuar a desenvolver o seu programa de mísseis balísticos, mas onde não se pode esquecer que a Arábia Saudita também deterá armas nucleares, já em 2013 a BBC assegurava que os sauditas estariam a cofinanciar o programa nuclear paquistanês, e se a Turquia não as produz nem por isso deixa de ser depositária de algumas bombas americanas por via da sua inclusão na NATO), almejam ver-se entre os países do G10 ou do G20 e no papel de incontornáveis potências continentais nas relações geopolíticas mundiais.

É na aspiração da Arábia Saudita, do Irão e da Turquia, desempenharem um papel central na região, que se sustentará a construção dum novo Médio Oriente aberto em perspectivas multipolares, para a Ásia, Rússia, Europa, e o aproveitamento desta dinâmica poderá permitir finalmente àquela região ponderar caminhos de pacificação que lhe pertencem exclusivamente, corrigindo, quiçá, muitos dos desmandos provocados pelas administrações francesas e inglesas durante a primeira metade do século passado (ver o post «DE CESSAR-FOGO EM CESSAR-FOGO»).

Para os três candidatos trata-se ainda de proteger o futuro dos respectivos regimes políticos, com todos os defeitos que se lhes conhecem: a monarquia absolutista da Arábia Saudita, o regime dos mullahs para o Irão, o lugar de Erdogan na Turquia. Mas quer se trate da Arábia Saudita, da Turquia ou do Irão, o essencial para cada um deles é garantir um papel preponderante na organização futura da sua região, o que deixará pouco espaço para a afirmação doutros interesses menores, como os dos sírios, libaneses, curdos ou arménios.

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