quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O TEMPO EM QUE O DEMO ANDA À SOLTA

Em tempos de menor formação e pior informação era usual associar as fatalidades que assolavam os povos à influência do demo, desculpa pronta para o difícil de explicar ou para as nefastas opções de governantes alcandorados ao poder por hereditariedade, desculpa que agora, em tempos de maior racionalidade, deveria soar a falso. Tão falso quanto as que antigamente ouvíamos sobre a inexistência de alternativas ou as que agora ouvimos quase diariamente sobre a instabilidade que nos rodeia.


Sejam as parangonas sobre a famigerada dívida pública (invariavelmente apresentada como consequência do despesismo desregrado e não como corolário dum sistema económico que aceitou a financeirização a qualquer preço) ou as ameaças de terrorismo (habitualmente associado ao extremismo islâmico, como se este não tivesse sido pacientemente tecido, financiado e armado para assegurar a conquista ou a manutenção de zonas de influência político-económicas), o que importa não é a realidade, mas a percepção que dela temos... ou que os demagogos nos vendem. Entrámos no campo ideal do populismo onde alguém apresenta algumas verdades aceites pela generalidade, mas de cuja enunciação duma forma incorrecta, resulta o seu reconhecimento como o novo salvador. E o que ultimamente não tem faltado por aí é quem se arrogue esse papel, prometendo o alívio de todos os males e apontando nos outros – nos estrangeiros, nos de cor, de ideias ou de credos diferentes – os responsáveis pela atribulada conjuntura que vivemos, nunca na conjugação dos interesses económicos e políticos que conduziram as sociedades à beira do abismo que eles próprios anunciam.
A crescente vaga de populismo não é um fenómeno novo nem inexplicável; deriva da sensação de insegurança – real ou fictícia – e do medo a ela associada e está a ser especialmente explorada por sectores políticos que oportunisticamente surgem em períodos de crise; veja-se o que aconteceu no primeiro quartel do século passado quando bem preparadas máquinas de propaganda conduziram ao poder líderes populistas que rapidamente transformaram em autoritarismo cego a democracia que lhes permitira a existência.

A História pode não se repetir, mas poucos duvidam da semelhança entre os aflitivos tempos da Grande Depressão e aqueles que hoje vivem as economias ocidentais (onde uma mal compreendida crise financeira representou apenas o primeiro sinal duma crise sistémica cuja evidência continua a ser negada, logo deficientemente enfrentada) e na qual a cidadania foi reduzida à mera figura de estilo das regulares votações. A conjugação de múltiplos factores, como a crise económica e social, expressa na forte destruição de emprego e no fraco crescimento das economias ocidentais, a alienação dos cidadãos face à política e a demagogia de pacotilha das promessas fáceis e da vilanização dos estrangeiros está a conduzir as democracias para um populismo que não pode acabar senão num novo totalitarismo.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

A MENTIRA DA VERDADE

Olhando em retrospectiva a questão dos acordos entre o ministro Mário Centeno e o ex-presidente da CGD António Domingues resume-se a pouco mais que uma breve lição de real politik.


Parece hoje claramente evidente que terá havido um acordo de princípio entre os dois para que o segundo (e o resto dos administradores) da CGD se eximisse à apresentação obrigatória da declaração de rendimentos e património ao Tribunal Constitucional. Igualmente óbvio parece o interesse que os motivou: Centeno queria apresentar uma administração para CGD credível e Domingues não terá compreendido (ou aceite) a ideia que gerir um banco público implica sujeição a “outras regras”.

O braço de força criado acabou por se revelar fatal para Domingues (que acabou por renunciar ao cargo) e muito desgastante para Centeno que ainda hoje continua debaixo de fogo, não por ter aceite as condições de Domingues – além da questão legal pouco se falou do que me parecia mais óbvio que era a entrada em força de altos quadros do BPI na administração da CGD – mas sobre a sua eventual cobertura àquela pretensão.

Levantada a lebre na TVI, por Marques Mendes (o advogado, ex-político e agora comentador político candidato a ocupar o lugar deixado vago por Marcelo Rebelo de Sousa no imaginário televisivo), de pronto PSD e CDS elevaram o problema a questão nacional e central da sua agenda política.

Claro que Centeno parece um alvo fácil nesta matéria, mas o encarniçamento de Passos Coelho e Assunção Cristas é tanto mais triste quanto outros temas há, como o fraco crescimento económico e a duvidosa descida da taxa de desemprego, que justificam mais atenção que a atribuída à questão, tivessem eles o engenho e a arte para tal.

Igualmente lamentável é que António Costa, o homem que habilmente conseguiu tecer a teia que sustenta o actual governo e que tem mostrado na prática que não só este funciona como existem alternativas à política da “austeridade expansionista” tão cara a Passos Coelho, não tenha intervido a tempo de evitar que um ministro politicamente inábil deixasse alimentar uma polémica que pode afinal não esconder outro desiderato que o de prolongar um ambiente desfavorável à recapitalização da CGD que contribua para justificar a tão desejada privatização.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

TRUMP E A PALESTINA

Depois da administração de Donald Trump ter divulgado a escolha de David Friedman como «Futuro embaixador dos EUA em Israel, o defensor dos colonatos que critica judeus de esquerda», já nem parece estranho que, no dia em que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, é recebido na Casa Branca, surja a notícia que uma «Fonte da administração Trump sugere que solução de dois Estados pode ser abandonada».


Em Washington têm-se avolumados os sinais de significativa inversão de estratégia relativamente a Israel e à questão palestiniana; primeiro foi a pronta reacção à inédita decisão da anterior administração se abster numa votação na ONU sobre a política israelita de expansão de colonatos, quando o próprio Trump veio dizer que «As coisas serão diferentes a partir de Janeiro», depois foi a questão da instalação em Jerusalém da representação americana em Israel, a que os palestinianos reagiram dizendo que «Mudar embaixada dos EUA para Jerusalém “será um crime de guerra”», mas o que é realmente preocupante neste alinhamento ostensivo com os israelitas é que os EUA estão efectivamente a hipotecar as suas já muito ténues capacidades como tradicional mediador entre judeus e palestinianos.

Mesmo que só raramente aceite como mediador imparcial, os EUA conseguiram alguns progressos na delicada questão palestiniana através da solução “dois povos-dois estados” que esteve na origem dos Acordos de Oslo mas que foi invariavelmente torpedeada pela prática israelita de expansão dos colonatos (ver a propósito o post «O FIM DA SOLUÇÃO DOS DOIS ESTADOS» e outros nele referidos) que a pouco e pouco foram transformando o território palestiniano numa manta de retalhos (situação agravada ainda pela construção de muros de separação) economicamente inviável. As posições agora assumidas pela administração Trump deverão ditar o adiamento de qualquer solução para um conflito (ora aberto, ora latente) que há décadas incendeia a região e acabar definitivamente com a ideia de que Israel é o exemplo de um estado democrático no Médio Oriente.

Depois de décadas e décadas em que beneficiaram duma má consciência ocidental sobre o Holocausto (tragédia de cuja recordação usam e abusam) e respaldados agora por uns EUA autárcicos e fundamentalistas (que hipocritamente se dizem satisfeitos com a solução "que eles preferirem" para conflito israelo-palestiniano) será enorme a tentação entre os fundamentalistas judaicos para recuperarem o seu velho sonho do Grande Israel, assim a comunidade internacional os deixe...

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O PARCEIRO ERRADO

Quando, no mundo ocidental, é dada cada vez mais atenção aos movimentos populistas, seja pela recente eleição de Donald Trump para presidente dos EUA seja pelo próximo quadro eleitoral europeu (especialmente depois do referendo britânico que levou ao Brexit), emerge uma figura que muitos europeus ainda não entenderão verdadeiramente: o euro-deputado e ex-líder do UKIP, Nigel Farage.


Este defensor declarado da saída do Reino Unido da UE e antigo membro do Partido Conservador britânico tornou-se notado em Bruxelas pela exposição de uns quantos casos de corrupção ou de comportamento eticamente criticável entre candidatos e comissários europeus, incluindo o então presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso.

Falhada a tentativa de eleição para a Câmara dos Comuns, em 2010, mas concretizada a vitória no referendo britânico, deixou a liderança do UKIP o que permite especular que talvez o seu objectivo não seja apenas o Brexit, antes o colapso da União Europeia. E os ventos parecem favoráveis quando as projecções para as próximas eleições na Europa atribuem fortes probabilidades aos seus homólogos holandeses e franceses e especialmente depois da eleição de Trump. O mesmo que elogiou o Brexit como "uma grande coisa", que disse repetidamente que pretendia "designar negociadores duros e inteligentes para lutar pelos trabalhadores americanos" e que no lugar de iniciar um conflito com a China (de consequências duvidosas) poderá optar por atirar os países europeus uns contra os outros.

A UE não é apenas um alvo muito fácil, é o elo mais fraco, tanto mais fraco quanto há décadas que os ingleses a vêem corroendo pelo interior, e que a eminência do Brexit  vai proporcionar aos EUA a promessa dum grande tratado de comércio livre com o Reino Unido que será simultâneamente uma mensagem clara para os restantes membros da UE: deixem a União e beneficiarão dum tratamento preferencial.

Incapaz (ou insuficiente forte) para enfrentar directamente a China, o seu mais sério rival e concorrente ao papel de principal potência, os EUA deverão aumentar a pressão para a fragmentação duma Europa que nunca se revelou efectivamente capaz de fazer valer internacionalmente o seu peso económico e político podendo o primeiro sinal vir a ser o endurecimento das condições de atribuição de vistos para os EUA aos empresários alemães e franceses ou a apresentação à Alemanha da factura adicional pelas tropas americanas estacionadas no seu território, enquanto os britânicos e os cidadãos dos países sem "migrantes muçulmanos da UE" (como a Polónia e a Hungria) serão recompensados com o acesso ultra-rápido aos negócios além-Atlântico.

Se isto acontecer a UE não tardará a entrar em colapso o que poderá libertar os ingleses da necessidade de lidar com a realidade confusa do pós-Brexit, podendo até o Reino Unido conservar um lugar que impeça os acontecimentos e bloqueie a solução; o impasse levará muitos dos cidadãos europeus a culpar a UE (e não os EUA), reforçando o papel profético dos populistas, como Nigel Farage, que não enjeitarão a oportunidade para mostrar que os Estados-Membros até fazem fila para sair da UE.

Num contexto destes, até poderão ser desnecessários os esforços de Vladimir Putin para garantir o mesmo efeito através da implantação dos seus homens nos Estados Bálticos, ou para reduzir a atractividade da UE para a Ucrânia, a Geórgia, ou qualquer outra parte da antiga União Soviética.

Em resumo, o futuro continuará a apresentar-se pessimista para uma UE agarrada às suas actuais estruturas não democráticas e não eleitas (como a Comissão Europeia e o Ecofin) e bloqueada por lideranças atávicas e desprovidas de visão para lançarem um processo de reforma da base até ao topo duma estrutura que sempre deixou campo livre a um Reino Unido mais atlantista que europeísta, enquanto manietava quem denunciasse o absurdo daquela estratégia e pugnasse pela construção duma Europa dotada das estruturas adequadas (eleitas pelos cidadãos, capazes de criar sistemas fiscais e orçamentais dignos duma verdadeira união e de um exército único capaz de projectar força e corporizar uma política externa efectiva) no lugar da simples nomenclatura criada com o BCE e o Parlamento Europeu.